São Jorge:
breviário de um percurso singular

O povoamento do território inicial de São Jorge começa poucos anos depois do achamento do arquipélago madeirense, ainda na primeira metade do século XIV. Dos primordiais colonos e sesmeiros deste lugar, que então se conhecia por “São Jorge de Trás da Ilha” e que abrangia as terras hoje divididas pelas freguesias de São Jorge, Santana, Arco de São Jorge e Ilha, conhecemos apenas alguns dos mais ilustres, como Urbano Lomelino, mercador italiano (da família genovesa dos marqueses de Lomellini), que viria a casar com Joana Lopes, filha de Isabel Correia, nascida em São Jorge em meados do século XIV.
Luís Dória, também ele genovês e sócio de Urbano, foi outro dos primeiros colonizadores, a par de Lopo Fernandes Pinto (filho de Fernão Pinto, que fora vedor da casa do infante D. Pedro, e neto de Aires Pinto, escudeiro do conde de Barcelos), e Pedro Gomes Galdo (filho do fidalgo galego João Gomes Galdo). Das terras de Galdo, transmitidas por via matrimonial para a família Carvalhal e Vasconcelos, surgiria o morgadio do Carvalhal, instituído por Francisco de Carvalhal e Vasconcelos – deste título foram, outrora, os extensos terrenos que hoje pertencem à quinta episcopal de S. Jorge e à igreja matriz, ocupando a quase totalidade dos actuais sítios de São Pedro, da Achada Grande, da Felpa e da Beira da Quinta, entre outros. A propriedade de Lopo Fernandes Pinto, por sua vez, daria origem ao morgadio da Ilha, instituído em 1559 por Jorge Pinto, seu filho. As famílias Cordeiro, Teixeira, e Moniz também pertenceriam ao número das primeiras e estariam já estabelecidas em São Jorge pelo ano de 1450 ou pouco depois.
O coração espiritual e cívico da comunidade que Henrique Henriques de Noronha apelida de “mais antiga deste Norte” situava-se junto ao mar, no sítio do Calhau, onde se edificou um casebre simples, em madeira revestida por caniços e palha, para servir de capelinha ao mártir São Jorge, patrono do Reino. Será, no entanto, o edifício seu sucessor, aí erguido em pedra e barro pelo ano de 1475, que conhecerá o primeiro capelão são-jorgense, Jorge Dias, nomeado em 1509 por D. Diogo Pinheiro, vigário-geral da Ordem de Cristo, sob mandato do rei D. Manuel. O mesmo monarca reconhecerá, a 4 de Dezembro de 1515, uma nova realidade: o alvará régio, assinado pelo monarca no Paço Real de Almeirim, substancia uma das maiores doações de D. Manuel a um templo local, atribuindo o estatuto de “igreja” à pequena capela e dotando-a de ornamentos, alfaias e atributos específicos de uma sede paroquial (estabelecendo, assim, o carácter da sua primazia eclesial a Norte) – é a partir deste momento que a nova comunidade assume plenamente o papel de freguesia (expressão utilizada para designar um conjunto de fregueses, do latim filii Ecclesiae: filhos da Igreja), sendo a sua autonomia reiterada em todos os documentos posteriores. Poucos anos depois, a 14 de Novembro de 1528, a igreja de São Jorge é elevada à dignidade de colegiada com a nomeação do raçoeiro Bernardo do Quintal para integrar o grupo de clérigos ao seu serviço (dos quais se conhecem, à época, o primeiro pároco, Jorge Dias, e o vigário Gonçalo Lopes), sendo- lhe atribuídos “oito mil reais que é outro tanto como têm os raçoeiros de Machico e todas as outras benesses”. A colegiada de São Jorge, extinta a 18 de Março de 1578, foi a única constituída a Norte, tendo gozado de dádivas equiparáveis às das sedes de capitania, usufruindo o beneficiado de S. Jorge de um rendimento anual igual ao concedido aos raçoeiros do Funchal, Machico e Porto Santo, e auferindo mais que os membros das restantes colegiadas: mais 2000 reais que o aproveitado pelos raçoeiros de Ponta do Sol e Santa Cruz, e o dobro do mantimento dos beneficiados de Câmara de Lobos, Caniço, Ribeira Brava e Calheta.
Durante os séculos XV, XVI e XVII edificam-se as ermidas de São Sebastião, Santa Ana, São Pedro e Nossa Senhora da Piedade, conformando os rasgos originais da piedade popular e lançando as sementes das novas comunidades e de uma vivência festiva que atravessará os tempos. A destruição da primeira igreja, carbonizada por um incêndio no ano de 1590, ditará a edificação da igreja filipina, construída sob o patrocínio da Coroa perto do mesmo local, da qual subsistem ainda o plano original e as medidas dos seus volumes. O colapso desta última construção, derrubada por uma pedra colossal na noite de Natal de 1659, está na origem de uma mudança sem precedentes na história insular: a trasladação do centro da freguesia para as terras altas, perto da vetusta capela de São Pedro. É, portanto, no sítio da Achada que se erige a terceira sede paroquial de São Jorge, numa linguagem algo inovadora que ficará, ainda assim, aquém da glória e majestade que lhe sucederá – é, de facto, com a demolição desta primeira igreja da Achada que nasce, enfim, o admirável ex-libris do património edificado são-jorgense: a Igreja Grande São Jorge, quarto templo paroquial desta terra. Monumento incontornável da arte barroca atlântica, será, em verdade, a dinâmica criada em torno da vida litúrgica deste importante marco a moldar os mais estimados usos e costumes e a conservar o património imaterial desta comunidade, com relevo para a riquíssima tradição sineira, única na região, e para as para-liturgias da matriz (o ritual do Descendimento da Cruz, a abertura solene do camarim, os autos pascais e de Natal, etc.). Esta quarta igreja matriz foi também sede do arciprestado de São Jorge que, no início do século XX, era um dos quatro em que se encontrava repartida a administração eclesiástica diocesana, estendendo a sua jurisdição às paróquias dos concelhos de Santana, São Vicente e Porto do Moniz.
No âmbito do património edificado merece distinção a chamada casa redonda de São Jorge, construção popular retangular, feita em tabuado e coberta a colmo, resquício singular das moradias dos primeiros povoadores, destacando-se das mais conhecidas casas de Santana pela sobriedade das suas formas e maior dimensão dos seus volumes. Outros elementos arquitetónicos e obras de arte permanecem como traços identitários relevantes na orografia de recantos que adensa o imaginário quotidiano das gentes de São Jorge: o pórtico monumental do Calhau (antiga entrada do forte de São Jorge, edificado no século XVIII), as pontes históricas do Caminho Real 23 e seus ramais (com destaque para a ponte do Calhau e a ponte do ramal 19), a ponte da Estrada Regional 101 sobre a ribeira de São Jorge (com a sua graciosa composição de arcos romanos em pedra), os fontanários principais (Fonte dos Namorados, Fonte do Pomar, Fonte do Calhau, etc.), os solares do século XVII e XVIII, o palacete e cavalariças de Francisco de Oliveira, a rede de vias pedestres empedradas em calhau rolado, o conjunto edificado do adro de São Jorge (em calçada e cantaria regional com traços monumentais em estilo Estado Novo), o busto/monumento do Cardeal D. Teodósio de Gouveia (do Escultor Anjos Teixeira), a escultura e nicho de Nossa Senhora dos Caminhos, o cruzeiro de pedra do cemitério de São Jorge (esculpido no século XVIII para o adro da igreja e tresladado no início do século XX), o moinho da Achadinha (o mais antigo em laboração constante na região), a serragem de água da Achadinha (uma das mais velhas da Europa), o farol de São Jorge, etc. Num registo paralelo, importa destacar o vasto património móvel litúrgico e devocional de elevado valor artístico, recolhido ao longo de cinco séculos, quem breve poderá ser fruído em plenitude no Museu do Barroco, anexo à Igreja Matriz de São Jorge.
À grandeza e extensão da herança patrimonial soma-se a magnitude de figuras ímpares na crónica regional e nacional: o grande orador liberal, Padre João Manuel de Freitas Branco, pároco de São Jorge e primeiro representante eleito do povo madeirense às Cortes Constitucionais (a par de João Francisco de Oliveira, físico-mor do Reino e antigo proprietário daquela que é hoje a Quinta Episcopal de São Jorge); Laureano da Câmara Falcão, político de relevo no panorama nacional, cavaleiro da casa real e último morgado são-jorgense (que recusou o título de visconde de São Jorge), responsável pela introdução da cultura do milho no arquipélago da Madeira (é em memória desse feito que o brasão do Município de Santana ostenta as espigas deste cereal); Teodoro Félix de Medina e Vasconcelos e seu filho, Francisco de Paula Medina e Vasconcelos, revolucionário liberal, autor da Zargueida, poeta e amigo de Bocage; D. Teodósio de Gouveia, primeiro cardeal madeirense, vulto da história contemporânea da Igreja e das missões, etc.
A crónica desta antiga localidade e das suas gentes, impossível de condensar em poucas linhas, estende-se no encontro afável com quem chega e prolonga-se numa realidade que fica sempre por cumprir, entre o mistério das memórias preservadas e o bálsamo das camélias e das bananilhas em flor. É uma narrativa de improbabilidades, que teima em continuar e a encontrar esperança nesse perpétuo novo dia, nascido em mar de prata e almejado nas luas cheias deste Norte que se reinventa a cada instante.

 

João Márcio de Matos